Pedaços de Mim
Precisava juntar meus pedaços, escolhi as palavras...
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UMA LEMBRANÇA... FEITO PÓ


Ainda era madrugada. Mas a lua já pressentindo o alvorecer tornara-se branca e descambava quase oculta para o horizonte.  Não tardaria muito e pelos lados do nascente uma claridade avermelhada revelaria um novo dia. O rei do terreiro ainda dormitava com suas galinhas sobre o pé de amoras ao lado do paiol e pouco se importava com o movimento àquela hora. Ele conhecia o seu tempo, como se um instinto lhe dissesse a hora exata que deveria entoar seu canto de despertar. Algumas galinhas cacarejavam, mas ainda não tinham a ordem de seu senhor para desceram do aconchego dos galhos de amoreira.

Ainda era outono. Um outono frio pelos prenúncios do inverno. Um vento gelado soprava levemente lutando em vão contra as chamas sensíveis de uma lamparina a querosene que iluminava um pequeno espaço em círculo debaixo do pé de laranja-celeste. Nessa clareira tão pequena, cercada pela escuridão, um amontoado de mandiocas esperava para serem descascadas. Mãos ásperas e trêmulas pelo frio se dedicavam a essa tarefa, lutando ainda contra o sono interrompido e o frio que castigava.  Antes que o sol nascesse era preciso que já estivessem descascadas e lavadas para serem raladas no desintegrador e irem para a prensa.

Lá pela hora do almoço, meu pai tirava a massa da prensa em grandes beijus que passavam por uma peneira fina em cima de grandes jiraus. Com a massa nesse ponto, meio úmida, mas completamente solta, minha mãe enchia uma gamela para preparar broas que serviriam de lanche naquelas tardes rudes onde a principal tarefa era trabalhar a mandioca.  Depois o restante do pó era levado para um tacho de bordas baixas. Sobre uma fornalha, lentamente ia secando, e aos poucos, ganhava uma cor dourada. Essa tarefa era de minha mãe e minha irmã mais velha que se revezavam durante todo o dia na torrafação da farinha, enfrentando o calor do fogo e a fumaça que às vezes se fazia traiçoeira. Não demorava muito o cheiro de farinha torrada espalhava pelo ar.  Descia-se então o tacho e a farinha ainda fumegante era despejada em sacas.

Paralela a esta tarefa de fazer farinha de mandioca, seguia-se a tarefa de fazer o polvilho usado para fazer quitandas. Até serem raladas, o processo era o mesmo da fabricação da farinha. A partir daí, a massa ia para uma espécie de rede de pano, onde era lavada e o amido que se desprendia da massa, ficava imerso no fundo de latões.  Essa tarefa era o inverso da torrafação da farinha onde se trabalhava praticamente no calor do fogo. Na fabricação do polvilho, as mãos trabalhavam a massa lavando-as na água gelada daquelas manhãs de outono.

No dia seguinte, jogava-se fora a água e uma camada branca e lisa aparecia ao fundo. Era retirado também em grandes beijus úmidos e colocado para secar sobre jiraus forrados de pano. Aos poucos eram esmigalhados à medida que iam se tornando secos e eram passados em peneiras finas, formando um pó fino levemente granulado, usado para fazer o famoso pão de queijo mineiro e outras tantas espécies de quitandas.

Era uma tarefa árdua que começava ainda no outono e se adentrava pelo inverno, dependendo do tamanho do roçado de mandioca. Mas terminava antes que a primavera colorisse o mundo com seu humor irresistível, trazendo o descanso de noites partidas ao meio e renovando a pele castigada pelo frio das madrugadas. O resultado era uma enorme pilha de sacas de farinha de mandioca e polvilho que serviriam de alimento durante o ano seguinte àquela família. Ou então, parte dessa produção era vendida em troca de algum dinheiro. Não muito. Mas que serviria para outros gastos necessários.

Era uma vida difícil, mas colorida por um romantismo escondido na simplicidade rústica de viver e buscar o sustento. Bons tempos, eu diria... Levados pelo interminável ciclo da vida, qual o vento que ameaçava levar pelo ar aquele pó fino que secava nos jiraus. Com a diferença de que essas lembranças não viraram pó e não foram levadas pelo vento. Resistiram a ele e ficaram imersas no fundo de minhas memórias.









Sonia de Fátima Machado Silva
Enviado por Sonia de Fátima Machado Silva em 11/12/2009
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