Pedaços de Mim
Precisava juntar meus pedaços, escolhi as palavras...
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VELHO ENGENHO



Tenho ocupado minha mente exercendo o ofício de buscar lembranças e jogá-las nessas páginas alvas. Acho que já falei isso uma dezena de vezes, excedendo-me no fato de tornar-me um tanto quanto repetitiva. O certo é que desenvolvi uma relação mais familiar com essa linguagem escrita. Ela é capaz de dizer exatamente tudo o que eu quero e que não seria capaz através da linguagem oral. É um experimento meio primário para mim, mas que decidi vasculhar, mesmo na minha falta de experiência, sucumbindo a essa urgência que têm me perturbado intensamente.

Conforme fecho os olhos, essa urgência mescla minha mente e tem um efeito saudoso em minha disposição de escrever. As lembranças emergem vindas das entranhas de minha memória e aos poucos, turva-me dessa urgência. Lembranças recentes. Lembranças distantes. Como essa que me fez girar... Girar... No girar contínuo, rodopiei no tempo e me vi girando como o velho engenho. Vi-me ao lado dele, numa madrugada de inverno. O vento gelado batia no meu rosto e assobiava junto com aquela cantiga sem fim das engrenagens apertadas.

O cavalo atrelado na ponta daquela madeira comprida andava em círculos, fazendo girar aquela engrenagem um tanto quanto rústica. Respirava forte pelo esforço e soltava pelas narinas uma fumaça provocada pelo frio. As ramas de cana, guiadas por mãos acostumadas ao trabalho, eram empurradas sem piedade entre aquelas engrenagens. Em segundos eram esmagadas, transformando-se em bagaço. Enquanto de dentro das engrenagens apertadas, escorria um líquido esverdeado e adocicado que chamamos de garapa. Devagar, a garapa enchia os latões.

Depois a garapa era levada para encher um enorme tacho de cobre sobre uma fornalha de barro, também enorme e redonda, com uma abertura por onde o fogo era alimentado com pedaços de madeira seca. O fogo ardente espantava o frio e aos poucos, apurava o líquido do tacho que se transformava num melado espesso na cor de caramelo. Nesse ponto, era despejado numa espécie de cocheira de madeira e era batido com uma pá de madeira até esbranquiçar. Depois com uma cuia feita da metade de uma cabaça, esse melado, já em um ponto meio pastoso era despejado em formas retangulares, onde ficavam a tomar formas sólidas, transformando-se em rapaduras, um doce típico do meio rural. Era nosso lanche da tarde de quase todos os dias o qual acompanhava uma fatia de queijo fresco.

Em meus pensamentos, fiquei acompanhando aquela tarefa. Revivendo todos aqueles momentos... Aqueles pedaços de infância tão longínquos como se eles fossem reais. Tenho sempre a sensação de que é difícil viver as coisas e entendê-las, quando estamos dentro dela, envolvidos. O viver passa despercebido. Só quando já estamos de fora e talvez a um tempo longe daquela passagem seja que a olhamos como se quiséssemos vivê-la de novo e de uma outra forma, para apreciar mais pedaços que não foram compreendidos.

Agora, de volta à realidade, sinto exatamente assim. Posso ainda sentir a tontura daquele girar sem descanso ao qual me entreguei por apenas alguns minutos. O frio da madrugada trás arrepios dentro de mim. Com certeza de saudade e essa vontade meio desesperada de reviver um tempo que já se foi. O cheiro da garapa quente a escorrer entre as engrenagens ainda está no ar. O cheiro do melado apurando no tacho de cobre... O cheiro da garapa e do melado têm o cheiro da infância e ainda resiste ao tempo, quais as ruínas meio cinzentas do velho engenho.  

O velho engenho ainda resiste. A ferrugem cobriu o que antes me parecia ser uma cor esverdeada qual a guarapa que tantas vezes escorrera de suas engrenagens. Mas agora são apenas ruínas de um tempo marcado de lembranças. Uma relíquia exposta aos fenômenos da natureza, abandonado no meio do pasto ao lado do velho pé de jatobá, também já quase carcomido pela velhice. Umas poucas folhas cobrem-lhe o caule cinzento e alguns frutos raquíticos caem sobre as ruínas do velho engenho.

Sei que em algum lugar da memória essas lembranças vão ficar para sempre, mesmo que até as ruínas daquele engenho se transformem em pó. Quando eu fechar os olhos, ainda vou poder ouvir aquela cantiga apertada nas engrenagens, o líquido da cana esmagada a escorrer dentro dos latões; o vento frio de um inverno implacável, ainda tão longe da primavera cheia de cor. E o mesmo vento a assobiar suaves canções, como se tocasse numa flauta em meus ouvidos. Talvez a sinfonia da saudade... Ou a orquestra das lembranças.

Não... Não quero acordar desse sonho. Quero ficar girando... Girando... Qual aquela madeira comprida que move as engrenagens do engenho. De certa forma meu cérebro gira como aquelas engrenagens. Com a diferença de que, em lugar da garapa, brotam lágrimas salgadas que não enchem latões, mas molham estas páginas brancas que aos poucos vou enchendo com minhas saudades na forma de letras.



Sonia de Fátima Machado Silva
Enviado por Sonia de Fátima Machado Silva em 11/12/2009
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