Pedaços de Mim
Precisava juntar meus pedaços, escolhi as palavras...
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OUTONO DA VIDA
De repente Lia abriu a janela e ele estava lá, visível na brisa leve que queria levar as folhas para um lugar qualquer. Sim, bastou abrir a janela e perceber que o outono estava lá porque tudo era diferente. Até a chuva da véspera fora diferente: uma preparação para o início do outono. Lia suspirou porque gostava daquele ar lavado, daquela brisa suave que beijava suas faces.  Fechou os olhos e pode sentir o hálito de folhas molhadas. De folhas que já se tingiam de um amarelo pardo e que se preparavam pra dançar o balé do outono. O balé mais clássico, mas ao mesmo tempo mais trágico, porque significava o fim nas águas do velho rio ou junto à terra, em um tapete plácido que, ao apodrecer daria mais fertilidade à mesma. Logo, um fim necessário para que pudesse haver renovação.
Como a natureza é mágica e misteriosa! Pensou Lia. Ela ficou pensando na vida humana, cujo ciclo ou história (ontogênese) dava a impressão de não se renovar, mas, simplesmente evoluir geneticamente rumo à morte. Mas evoluir não é de alguma forma renovar? Com a diferença de que muitos elementos da natureza estavam sempre ali, muitas vezes sempre iguais e no mesmo lugar enquanto que o ser humano não era o mesmo em cada renovação da vida. Seus bulbos talvez renasçam em algum lugar além da terra.
Atordoada com tantos questionamentos e mistérios, Lia estava certa de apenas uma coisa: era preciso viver cada ciclo da vida intensamente e por pensar assim foi que pulou da cama. Vestiu-se rapidamente e calçou os velhos chinelos havaiana.  No banheiro lavou o rosto espantando as réstias de sono e pode ver ali as marcas do outono da vida. Marcas físicas e marcas do próprio viver inconstante. Ao escovar os cabelos curtos, sentiu com certa apreensão a agressão sofrida pelos mesmos em razão desses ciclos da vida: dois centímetros escuros junto à raiz em contraste com o louro claro acinzentado “artificial” revelavam a forma também artificial de se manter jovem. Mas não se queixava. Viver é uma trama e os artificialismos faziam parte dela.
Cansada de pensar, saiu apressada. Nem tomou café. Pulou feito adolescente a cerca de pau-a-pique do quintal não se dando ao trabalho de dar a volta e passar pela porteira. Com passos rápidos atravessou o pequeno espaço gramado até a velha árvore. Imponente, ela parecia que a esperava. Desde o outono de 2005, a velha árvore era para Lia o símbolo da natureza e da vida, das reflexões... Naquele outono ela viveu tudo isso e desde então já não era mais a mesma. Agora sabia que era preciso viver de alguma forma antes que a vida fosse ceifada. Para ela, viver significava olhar em volta e sentir a essência de tudo. Então queria libertar sua vida ao vento antes que a próxima estação viesse buscá-la embrulhada na lã do inverno, esperando cada célula vital cumprir seu ciclo.
E foi assim que Lia, de repente, se viu sentada debaixo da velha árvore envolvida por sua sombra e centenas de folhas de outono levadas pelo vento. Quanta leveza! A vida deveria ser assim. O vento tinha um acorde silencioso e harmônico quebrado apenas pela orquestra dos pássaros. Lia fechou os olhos... Podia sentir a orquestra e a evolução mais bela de “O Lago do cisne”, silenciando e, ao mesmo tempo gritando amarguras, alegrias, crises de existência... A expressão dos sentimentos potenciados pela música e compasso ia penetrando sua alma.  Que narrativas traziam aquele compasso?  Certamente não era o suicídio de Odette e Siegfried da nova versão do ballet de Tchaikovsky, mas a urgência de viver o encanto da vida que não pode ser quebrado nem mesmo pelas angústias do amor e da existência.  
Lia bem sabia ou procurava saber há tanto tempo que o “eu” que fugia e voltava fazia parte das crises existenciais. Era necessário até. Para ela, ele voltava sempre que procurava a velha árvore. O contato com a natureza... Com um sistema maior... Agora sabia que fazia parte desse sistema maior que só podia ser compreendido no todo. Um sistema complexo, mas único.  Tudo era interligado e uma teia dependia da outra. Assim também eram as estações da natureza e da vida.
De uma coisa Lia também tinha certeza, havia uma atração quase fatal entre ela e o outono. Entre ela e a velha árvore... Por isso estava lá. Porque lá compreendia a teoria sistêmica e da renovação e porque lá podia sentir na aspereza do tronco da velha árvore que a vida pode ser tão bela mesmo com suas agruras.
No outono passado Lia ali estivera e desenhara em palavras a crônica da velha árvore depois de rezar as contas do rosário. Falara de sua imponência. Rabiscara palavras de arrependimento, de perdão. Justificou sua ausência. Falou de suas correrias pela vida. Martirizou seus pensamentos. Refez viagens ao passado depois de ter decidido não mais reviver momentos, lembrar pessoas, as coisas da infância... Mas sabia ser necessário para reencontrar sua verdadeira identidade e foi por isso que desde aquele dia Lia jurara nunca mais abandonar a velha árvore, símbolo do seu “eu” resgatado.
Hoje, mais uma vez, a velha árvore a acolhe. Ansiosa sente sua sombra dar-lhe as boas vindas e afaga seu tronco áspero e escuro abraçando-se a ele e sentindo a proteção de um ser vivo que, apesar de não ser humano, parece compreender os dilemas da vida.  A rigidez do caule machuca Lia, mas é como um castigo doce que, ao mesmo tempo, repara os erros de todos aqueles anos.
Hoje Lia não desenhará a velha árvore em palavras, embora sinta a ânsia de seus dedos. Não quer formar palavras de outono amarelo e pardo, apenas sentir a leve brisa... O farfalhar das folhas da velha árvore... O trinado dos pássaros...  Não importa palavras escritas nas linhas de um papel qualquer porque o mais importante está dentro dela.  É a vida... Ela agita qual o vento de outono, quais as folhas que dançam a sua coreografia mais bela...
Depois desse outono Lia nunca mais retornou à velha árvore...


(Publicado na Antologia "Contos de Outono" - Edição 2011 da Câmara Brasileira de Jovens Escritores do Rio de Janeiro-CBJE).
Sonia de Fátima Machado Silva
Enviado por Sonia de Fátima Machado Silva em 21/03/2012
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