Pedaços de Mim
Precisava juntar meus pedaços, escolhi as palavras...
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Textos

 

FOI O VENTO

 

POR: Sônia Machado

 

Capítulo 33

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UM ANO HAVIA SE PASSADO. NOVAMENTE ERA INVERNO.  O vento como sempre, brincalhão nessa época do ano, já despia as gigantescas e belas árvores da Rua Tonelero, ao mesmo tempo em que assobiava tentando entrar por todas as frestas possíveis.

A temperatura tinha baixado muito naquela semana e, por isso, quando Lívia saiu naquela tarde, depois de mal ter chegado em casa, apanhara, em cima da poltrona xadrez, o sobretudo caramelo de lã batida. A poltrona era a mesma do tempo de sua mãe. Apesar das posses de agora, Lívia manteve tudo como era antes. Ela não queria e nem precisava de nada mais além do que já tinha, até porque passava pouco tempo em casa. Aquela tarde era uma das raras vezes.

Por um instante, Lívia pareceu ver sua mãe ali naquela poltrona onde passava todas as tardes lendo seus romances de Machado de Assis. Agora com a melancolia do inverno, essas lembranças eram mais latentes, embora não fosse algo que doesse, mas trazia uma saudade doce que apertava o peito.

 Com um suspiro sentou-se na poltrona e arrastou as botas de cano curto e salto baixo que havia deixado perto da mesa de centro e as calçou. Colocou novamente no pescoço a pashmina xadrez que descansava em cima da bolsa.

Ela vestia uma calça jeans flare com leves detalhes Destroyed e, por baixo do sobretudo, um suéter branco de tricô. Apesar do ar sofisticado e elegante, em seu interior, Lívia continuava a menina simples de sempre. Se ganhara um ar mais formal em seu exterior, fora devido, talvez, às tantas tarefas que precisava cumprir como empresária. 

 

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Lívia havia passado a manhã inteira visitando as várias ONG’s que havia criado no último ano.

No antigo palacete da Rua Bom Pastor, no Bairro Ipiranga, por exemplo, ela sediou uma ONG voltada para a cultura, aproveitando a suntuosidade do lugar que respirava história em cada detalhe das paredes, pisos e tetos. O objetivo dessa ONG, entre outros, era desenvolver ações culturais, projetos audiovisuais, difundir a leitura e escrita de obras literárias, promover oficinas de arte para crianças, jovens e adultos de baixa renda. Adaptou, inclusive, um pequeno anfiteatro no hall central que servia para apresentações teatrais e exibição de filmes. 

Além disso, Lívia criou também uma ONG voltada para a saúde, cujo objetivo era possibilitar atendimento e tratamento médicos e odontológicos, visando sempre a classe mais baixa.  Essa ONG, na verdade era uma pequena clínica que fazia atendimentos básicos e encaminhamentos importantes para outros hospitais e clínicas mais avançadas.  Nesses encaminhamentos incluía, sobretudo, cirurgias, internações em UTIS, pois Lívia sabia como era difícil, às vezes, conseguir vagas pelo SUS e o quanto as esperas eram demoradas. Tudo era custeado pela ONG.

A essas ONG’s juntou-se outra voltada para a educação formal e informal e basicamente com tempo integral, cujo público alvo era crianças, filhos de mães que precisavam sair para trabalhar fora.  Não era uma grande escola com capacidade para muitos alunos, mas facilitava a vida de muitas mães pobres. 

 Além disso, em homenagem à sua mãe D. Esmeralda, que era costureira, Lívia criou uma ONG que nada mais era que uma pequena fábrica de costura que permitia trabalho para muitas mulheres pobres, cujo lucro da produção que consistia em atacado e varejo, era dividido entre elas.  Além disso, essa fábrica também oferecia cursos relacionados à moda e costura para as mulheres que trabalhavam na Fábrica. Lívia entendia que, na realidade atual, as coisas mudam muito rápido assim como as tendências e as costureiras precisavam estar sempre aprendendo técnicas novas e se especializando. Os cursos eram abertos também a outras mulheres interessadas e que não trabalhavam na Fábrica.

Exceto a ONG com sede no Palacete, que se tornou basicamente uma casa de cultura, devido, especialmente à estrutura antiga e as atividades, as demais ONGs foram criadas na Zona Sul de São Paulo. Lívia quis ir direto ao ponto da vulnerabilidade social e escolheu o esquecido bairro Marsilac, distrito que mais registrou dados negativos nos setores da saúde, educação, renda, cultura, entre outros, segundo o Mapa da Desigualdade de 2020.

Criar ONG’s, portanto, foi a solução que Lívia encontrou, monitorada pelo advogado Dr. Fonseca, para aplicar praticamente todos os lucros provenientes dos bens do avô de uma forma benéfica que transformasse a vida de algumas pessoas, pois ela mesma não precisava de tanto.  Para isso ela trabalhou com afinco durante um ano e já sentia os resultados positivos para sua imensa alegria e admiração de todos que conviviam com ela.  

Lívia, contudo, continuava sua vida simples. Ela não quis morar na mansão onde o avô vivera. Preferiu ficar na velha e antiga casa da Rua Tonelero. Lá era seu lugar. Não precisava mais que isso.

A única coisa que fez para si mesma foi continuar a sua Graduação em Artes Visuais e em razão da sua nova condição de empresária, viu-se obrigada também a cursar uma graduação em Administração.

O único luxo que Lívia se permitiu foi continuar com o Land Rover Range que era do avô, mas dispensara, contudo, os serviços do motorista apesar de Dr. Fonseca insistir.

— Ter um motorista particular é relevante em razão da sua importância profissional e social. — Dr. Fonseca tentara persuadi-la —Você sabia que sua imagem profissional ficará mais valorizada? Se sua intenção é passar confiança e a imagem de alguém bem sucedido, considere usar um motorista particular.

—Pode até ser tudo isso que o Senhor falou Dr. Fonseca. Mas o Senhor sabe que minha intenção não é entrar nessa onda hipócrita da sociedade. Não quero cometer os mesmos erros de meu avô. Portanto, vou dirigir eu mesma o Land Rover Range e que se fodam essa classe que dita regras absurdas.

— Mas considere então pelo menos a questão da otimização de seu tempo, a sua rotina puxada, o trânsito puxado para uma menina como você. — O Advogado aprecia exasperado diante da relutância de Lívia.

— O trânsito será puxado para uma menina como eu? O Senhor está me subestimando. Francamente. Está se saindo um perfeito machista — Lívia disse e entrou no Land Rover Range e arrancou cantando os pneus. Pelo retrovisor viu Dr. Fonseca levar a mão à cabeça e deu uma gargalhada.

Lívia poderia ter comprado um carro mais popular, mas o Land Rover Range era a presença marcante do avô todos os dias onde ela fosse, além, de facilitar seu trabalho de ir e vir. Durante o dia ela precisava estar em vários lugares.

Para visitar só as ONGs da Zona Sul, por exemplo, ela percorria todos os dias praticamente quase cem quilômetros entre ir e vir.

Lívia se sentia bem fazendo seu trabalho nas ONG’s e reservava a parte da manhã e às vezes metade da tarde para fazer esse trabalho juntamente com uma assistente. Quando o trabalho se estendia pela tarde, elas almoçavam em um restaurante na Marginal Pinheiros, geralmente o Restaurante Friends Morumbi, situado no estacionamento do Hipermercado Extra Morumbi, na Zona Sul de São Paulo. Lívia sempre se encantava com o espaço enorme, a comida variada que ela mesma podia escolher e se servir; e a cor vermelha e branca das paredes e os jardins que seguiam rodeando toda a estrutura do alicerce.

A parte da tarde ou apenas metade dela, Lívia passava na Imobiliária resolvendo questões diversas junto com o administrador ou com Dr. Fonseca, o advogado e também com sua assistente, pois o escritório central das ONGs ficava também no prédio da Imobiliária. Ela sempre se referia a tudo como bens de seu avô. Na verdade não se sentia dona de nada. Apenas era a administradora.

—Você está se saindo muito bem. — Dr. Fonseca havia dito com sinceridade numa tarde enquanto revisavam alguns documentos. — Está fazendo um ótimo trabalho social com as ONG’s e a administração da Imobiliária. Confesso que tive receio que não conseguisse. — confessou.

— Obrigada Dr. Fonseca. — Lívia agradeceu enquanto colocava uns papéis numa pasta. — Eu confesso que também pensei que não ia conseguir. Não fosse pelo Senhor

—Imagina... Não fiz nada senão meu trabalho e o que prometi ao seu avô.  Preparar você. O mérito foi seu. — E olhando para Lívia comentou:— Você se parece com seu avô.

— Dr. Fonseca... Acho que o Senhor já me falou isso um monte de vezes. — Lívia riu e de súbito pegou um porta-retratos de seu avô que ficava na sua mesa e ficou olhando-o por alguns segundos.

—Sabe Sr. Fonseca? Meu avô cometeu muitos erros. Mas se redimiu antes de partir. E eu fico feliz de poder ajudá-lo com esse trabalho.

—“A glória está na reparação dos erros”— Lívia disse pensativa se lembrando de sua mãe. —Sabe Dr. Fonseca? Minha mãe estava certa e Machado de Assis também.

—Machado de Assis?—O advogado questionou sem entender

—Sim... Essa frase é dele e minha mãe a leu para mim poucos dias antes de partir. Ela vivia lendo esse escritor. — disse com um olhar saudoso e reflexivo.— Era um pedido velado que ela me fazia. Com certeza ela esperava de mim que eu fizesse exatamente o que faço hoje. Sinto-me feliz por ter reparado os erros de meu avô e, com isso, reparo, pelo menos um pouco dos erros sociais.

—De fato... Isso é uma glória... — Dr. Fonseca estava admirado com o trabalho de Lívia. Sua persistência, coragem e força.

—Se não é Dr. Fonseca... — disse colocando a fotografia do avô no lugar e levantando-se da mesa.

—Agora preciso ir Dr. Fonseca, senão chego atrasada na Faculdade. — E ambos saíram da sala e desceram o elevador.

 Lívia, depois das responsabilidades do dia ainda cursava, à noite, a sua graduação em Artes Visuais e em algum momento vago em casa, uma graduação à distância em Administração, pois seu trabalho exigia conhecimentos nessa área.

Assim Lívia seguia sua vida e mal tinha tempo de pensar.  O único momento reflexivo a que se permitia e se deixava levar pelas lembranças e saudades era quando, uma vez por mês, ia ao cemitério levar flores para os pais e também o avô. Levava sempre rosas do pequeno jardim.

 

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Naquela tarde Lívia pegou a bolsa e desceu devagar as escadas da antiga casa como que medindo cada passo sobre o mármore branco. Quando chegou ao portãozinho, parou por instantes e ficou observando a rua que já ganhava ares de inverno: as folhas secas por todos os cantos e as árvores já praticamente despidas.

De repente, apesar de estar tão exageradamente protegida com tantos agasalhos, Lívia também se sentiu despida tal qual aquelas árvores. Muitas folhas de sua vida haviam caído e logo outras novas iriam brotar.

—Na verdade muitas folhas já estão brotando em minha vida. — disse para si mesma pensando nas ONGs com alegria.

Então ela pensou em Arthur. Há muito tempo não pensava nele. Não se permitia e nem estava tendo tempo. Ela agradeceu ao tempo por isso. Mas naquele instante ela não pode evitar e pensou em Arthur. Lembrou-se das vezes que subiam aquelas escadas de mãos dadas. Só então se lembrou de que pedira um tempo a ele.

—Com certeza ele não me esperou. Já deve já ter outra pessoa em sua vida. —disse em voz alta e suspirou pensando que homem algum esperaria tanto tempo por uma mulher.

Quando Lívia percebeu um ano já havia se passado e ela se via novamente no inverno abrindo o velho portãozinho para ir à padaria Laika, algo que não fazia desde que a mãe partira. Ela nem sabia explicar porque estava agindo daquele jeito naquele dia. Era algo praticamente involuntário.

Enquanto Lívia caminhava devagar pela calçada forrada de folhas secas, de súbito lhe veio novamente a imagem de Arthur.

 —Foi o vento... Sim... Foi ele... —disse para si mesma enquanto caminhava. —Quem pode com o vento de inverno?

De fato, o vento estava forte naquela tarde e batia em seu rosto e também insistia em sussurrar lembranças. Então Lívia parou exatamente no lugar onde caíra a sua boina de tricô há um ano. Sorriu ao recordar de Arthur colocando a boina em sua cabeça e o fio de cabelo atrás de sua orelha. Depois fez aquela reverência que lhe parecera tão divertida e medieval e saiu chutando as folhas da rua.

Lívia nunca mais tinha procurado saber de Arthur.  Por orgulho, talvez... Agora livre do peso desse sentimento mesquinho, sentiu dentro de si a liberdade de relembrar. Sentiu saudades de Arthur. Do seu jeito simples. Das tardes que passavam juntos e das caminhadas pela rua.

O vento soprou mais forte e ela sentiu uma solidão fria na alma. Fria como aquele inverno.

É tarde demais... —disse para si mesma.

Com um suspiro que parecia ser a redenção possível naquele momento, Lívia enfiou as mãos nos bolsos do sobretudo e retornou a caminhada com o olhar pela calçada, observando as folhas amontoadas pelos cantos. O vento brincalhão a seguindo, insistindo em lhe dizer coisas.

Foi então que seu corpo bateu de encontro com outro corpo que, com certeza, também caminhava com o olhar na calçada.

Ambos levantaram os olhos ao mesmo tempo. Ela, os olhos de mel. Ele, os olhos negros... Lívia abriu a boca como se fosse dizer algo. Arthur apenas sorriu com o canto da boca como sempre fazia e se afastou um pouco fazendo uma reverência. 

 

 

 

CONTINUA...

 


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1681073.gifhttps://www.youtube.com/watch?v=FFEKeQ822MY

 


 

 

 

Sonia de Fátima Machado Silva
Enviado por Sonia de Fátima Machado Silva em 14/03/2024
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