Pedaços de Mim
Precisava juntar meus pedaços, escolhi as palavras...
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Textos

 

 

 

EU E WILLIAM SHAKESPEARE

 

—Conheci William Shakespeare mais por culpa de Romeu e Julieta.

—Aqueles dois adolescentes cujo amor era proibido porque suas famílias viviam em pé de guerra?

—Sim esses mesmos. Diziam que Julieta tinha treze anos e Romeu dezessete. E diziam também que Julieta fingiu morrer por envenenamento. Ela bebeu uma poção que a deixou em estado catatônico.

—Catatônico?

—Sim, imóvel. Era uma poção feita, se não me engano da Beladona. Em alguns casos pode provocar excitação motora, mas Julieta ficou parecendo morta.

—Beladona não é aquela flor linda e grande com formato de trombeta e meio matizadas?

— Essa mesma.  Tem de várias cores, desde o rosa, o branco e o vermelho até ao lilás.  A flor rosa claro, por exemplo, vai escurecendo para o rosa escuro ou vermelho à medida que envelhece.  Tinha um pé de Beladona rosa claro lá na fazenda de meus avós paternos, bem debaixo do pé de tangerina, logo depois do pé de hibisco vermelho.    O cheio da flor não era dos mais agradáveis, mas eu e minhas irmãs colhíamos e brincávamos assim mesmo. 

—Mas é uma flor tóxica.

— Na verdade é a folha e a raiz que são extremamente tóxicas.

—Mas e sobre Romeu e Julieta... 

—Ah! Tá. Então. Julieta bebeu a poção de Beladona e ficou parecendo morta. Romeu se desesperou, bebeu veneno e morreu de verdade. Quando Julieta acorda e se dá conta do que havia acontecido, se mata com o punhal de Romeu.

—Uau que tragédia ei?

— Sim. Coisa da imaginação de Shakespeare. Essa história, ou melhor, tragédia, representa um dos maiores clássicos da literatura mundial e, até hoje é encenada através de filmes, músicas, poesias, pinturas.

—Nossa, William Shakespeare tinha imaginação mesmo ei?

—Tinha. Imaginação e talento. Foi um importante poeta e dramaturgo inglês.  Sua importância era, na verdade mundial.

—E então você o conheceu? Mas quando foi isso?  Não venha me dizer que foi em Stratford-upon-Avon, no condado de Warwick por volta de 1564.

— Tá doida? Claro que não. Em 1564 foi o ano que Willian nasceu. Em abril.  Eu fui lá bem depois.

—Foi?

—Sim. Fui. Porque o espanto? Shakespeare me levou lá na casa onde nasceu, na Henley Street, a principal rua de Stratford-upon-Avon. Foi em 2014.

—2014? Está inventando.

— Olhe bem para mim se tenho cara de inventar coisas. Francamente.

—Tá certo então. Continue.

 —Não precisa revirar os olhos. Bem, na verdade fui lá na casa de Shakespeare não por causa de “Romeu e Julieta”.   Nem por causa de “Hamlet”, “Otelo” e muito menos “A megera domada”. 

—Espera aí, estou ficando maluca. Quem são esses?

—Então não sabe? Olhe, Hamlet é também uma tragédia escrita por Shakespeare e conta a história de um príncipe que tenta vingar a morte de seu pai. Tem de tudo em Hamlet, conflitos de família, amores, loucura e sanidade, poder, moralidade...

—Tá, mas onde está a tragédia nisso tudo?

—É que Hamlet morre em um duelo. Foi morto pelo tio que envenenou a ponta da espada para garantir seu fim.

—Nossa. Põe tragédia nisso.

—Pois é.

—Espera aí, Hamlet não é aquele que levantou a questão do ser ou não ser?

—Ele mesmo. Essa frase “Ser ou não ser, eis a questão” foi dita por Hamlet durante o monólogo da primeira cena do terceiro ato na peça de Shakespeare.

—E nos faz pensar. Será o que quer dizer?

—Eu diria que depende do ponto de vista de cada um. Tanto pode ser existir ou não existir, viver ou morrer. Veja esse trecho:

 

“Ser ou não ser, eis a questão.

O que é mais nobre? Sofrer na alma

As flechas da fortuna ultrajante

Ou pegar em armas contra um mar de dores

Pondo-lhes um fim?”

 

—Eu penso que tem a ver com escolhas que precisamos fazer, a forma de agir.

— Éh! Tem sentido.

 —E “Otelo”? É também uma tragédia?

—É sim. Uma tragédia, digamos política.

— Política?

—Não se assuste. Há mais tragédias em política do que se supõe. Otelo, por exemplo, era um general mouro a serviço do reino de Veneza que se casou às escondidas com uma moça de pele clara e filha de um rico senador. Era um casamento inter-racial, polêmico para a época. Essa tragédia trazia temas universais como ciúme, traição, amor, inveja e racismo.

— Mas e o ponto culminante da tragédia, qual é?

—Bem, está no fato de Otelo, movido por intrigas políticas, matar asfixiada a sua esposa, acreditando que ela o havia traído. Quando descobre que fora vítima de uma trama e que matara sua amada esposa injustamente, apunhala-se, caindo sobre o corpo de sua mulher. 

—Nossa. É cada história! Muita tragédia para meu gosto. 

—Para o gosto mundial não tinha nada melhor. 

—Verdade, o povo gosta de tragédias. Dá mais assunto.

— Dá. Não é a toa que os canais de TV hoje se esbanjam nas tragédias alheias nos fins de tarde. Bem, Shakespeare tinha mania de tragédias. E comédias.

—Comédias também?

— Sim “A megera domada”, por exemplo foi uma entre muitas. Conta a história de um tal de Petrúquio, nobre falido de Verona na Itália. Ele chega à cidade em busca de um bom casamento e aceita a ideia de se casar com Catarina, a megera teimosa e rude e acaba por amansá-la.

— Huum... Está me parecendo a história de uma novela global.  Se não me engano “O cravo e a Rosa”.

—De fato. O Cravo e a Rosa é inspirado em “A megera domada.” Foi escrita por Walcyr Carrasco. 

— Me pareceu machista essa comédia.  O que tem de humor uma mulher ser domada pelo marido?

—Verdade, nos dias atuais, podemos considerar machista ao extremo. Mas naquele tempo não. Era comum.  

—Ei, acho que nos perdemos no caminho para Stratford-upon-Avon menina.  Você não ia contar que Shakespeare te levou lá?

— Ah! É mesmo. Essa coisa de tragédias e comédias envolve a gente.

— Bem, você estava dizendo que não foi lá na casa dele por causa delas. Foi por causa de quê então?

—Foi por causa de seus sonetos.

—Sonetos? Não me parece um bom motivo para visitar alguém.

—Engana-se. No meu caso é mais que um motivo. Primeiro porque é a melhor representação da poesia lírica por meio do qual muitos escritores vão cruzando os séculos cantando diversos temas como o amor, a crença ou a descrença, a mulher, o homem, o universo interior e mais um monte de temas.

—Cantando?

— Sim o soneto significa, de forma literal, pequena canção ou pequeno som.

—Já notei mesmo que quando um soneto é declamado parece uma canção.

—Pois então.

—Mas você visitou Shakespeare por causa disso?

—Visitei. Porque foi o fato de escrever sonetos que me fez apaixonar por ele. Mais especificamente por ter fugido à regra do classicismo dos sonetos.  Foi ele que inventou o soneto inglês, formado por três quartetos (estrofes com quatro versos) e um dístico (estrofe —com dois versos).

—Ah! Tá. O soneto clássico tem dois quartetos e dois tercetos, não é?

— Sim e tem origem italiana. Segundo pesquisadores, foi criado pelo poeta e humanista Francesco Petrarca, no século XIV.  Mas essa questão toda de eu me apaixonar por Shakespeare e até ir visitá-lo, aconteceu em novembro de 2014, numa sexta-feira, as tais Black Friday. Eu entrei na Livraria Online Saraiva.

—Você vive nessas livrarias.

 —Não estava nem de longe pensando em Shakespeare quando dei de cara com ele e seus melhores sonetos em um livro de bolso. Confesso que eu só conhecia o soneto 18. Aquele que ele fez quando seu filho Hamnet morreu.   Antes que pergunte, não tem nada a ver com a tragédia Hamlet.

—Ah! Tá. 

—O soneto era esse:

 

Devo igualar-te a um dia de verão?

Mais afável e belo é o teu semblante:

O vento esfolha Maio inda em botão,

Dura o termo estival um breve instante.

 

Muitas vezes a luz do céu calcina,

Mas o áureo tom também perde a clareza:

De seu belo a beleza enfim declina,

Ao léu ou pelas leis da Natureza.

 

Só teu verão eterno não se acaba

Nem a posse de tua formosura;

De impor-te a sombra a Morte não se gaba

Pois que esta estrofe eterna ao Tempo dura.

 

Enquanto houver viventes nesta lida,

Há-de viver meu verso e te dar vida.

 

 —Nossa, muito lindo.  Parece que ele fala de eternidade, não é?

—Sim, ele congelou nos versos seu pequeno filho Hamnet.  Sabia que a simples pronúncia de Shakespeare me deixa trêmula?

— Mas por que?

—Ele é como uma estrela inatingível. Sempre tive isso na cabeça. Pronunciar seu nome dá status. Falar que já leu Shakespeare faz as pessoas te olharem atravessado. De inveja.

—No entanto, você foi lá na casa dele.

—Fui. Depois daquele dia na Livraria online Saraiva. Ele veio primeiro comigo para minha simples casa acredita? E entre um soneto maravilhoso e outro nos conhecemos melhor.   O soneto II, por exemplo, falava sobre quarenta invernos cavarem as linhas de seu rosto. Eu já tinha era mais de cinquenta invernos.  Mas serviu mesmo assim. E tinha também o soneto XXXV, cujos versos pediam para que não me afligisse com o que fiz. Tranquilizou-me, dizendo que “as rosas têm espinhos; a fonte, lama”. Foi bom porque tenho mania de culpas.

 —Até que finalmente fui à sua casa.  Talvez por curiosidade. Mas foi depois dos sonetos e não Romeu e Julieta. Não lembro o dia. Só sei que foi em 2014.  Ele estava me esperando no Aeroporto de Heathrow em Londres.

—Ele estava te esperando?

—Estava. Então do aeroporto pegamos um trem na estação de Marylebone e depois de duas horas e quarenta e seis minutos chegamos em Stratford-upon-Avon. Depois caminhamos a pé umas cinco ou seis quadras observando as casas incríveis que conservam sua arquitetura antiga, a tal arquitetura Tudor, da época da dinastia Tudor que foi de 1485 a 1603.  As casas se destacam pela utilização do einxamel.

—O que é isso?

—Bem, segundo o famoso Priberam, é uma técnica de construção que utiliza madeiras encaixadas em posição horizontal, vertical e oblíqua, com preenchimento dos espaços por tijolo ou estuque.

—Entendi. E estuque, o que é? 

—Vamos lá. Segundo o sábio Priberam, é um tipo de argamassa feita de pó de mármore, cal fina, gesso e areia, e com a qual se cobrem paredes, tetos e também se fazem ornamentos.

—Mas me diga, a casa onde Willian nasceu e viveu até se casar tinha também essa tal arquitetura tudor?

—Tinha sim. Desse jeitinho. Linda, à margem esquerda do Rio Avon.  Lá dentro, o passado presente em cada canto, inclusive a cama onde Shakespeare nasceu, as coisas que o pai trabalhava como luveiro... 

—Imagino a emoção que foi conhecer esse poeta e dramaturgo incrível e até sua casa.

— Sim, muita emoção. É preciso, talvez, ficar em silêncio para entender.  Aliás, Shakespeare mesmo disse que “o silêncio é o mais perfeito arauto da felicidade[...] As palavras estão cheias de falsidade ou de arte” ...

—Eh! Vocês se veem sempre?

—Eu e William? Sim. Quase sempre desde 2014. Até porque como ele mesmo disse no segundo verso do soneto LX “Nossos minutos correm para o fim”.

 

 


 

Nesse conto há uma realidade misturada à fantasia. Minha relação com Shakespeare é real. Eu apenas coloquei uma dose de fantasia.

 


 

 

Sonia de Fátima Machado Silva
Enviado por Sonia de Fátima Machado Silva em 25/09/2022
Alterado em 27/09/2022
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